segunda-feira, 15 de outubro de 2012


DESFAZENDO DESERTOS



1. Habitando o Deserto

Conta a história que uma frágil nômade, oriunda de uma tribo disfuncional, caminhou durante 45 anos pelo deserto, um lugar inóspito e que não oferecia segurança a ninguém.

Ela caminhou por esta estrada árida quase sempre sozinha, no afã de encontrar as razões de sua extrema fragilidade. 

Atravessar o deserto foi para ela como se seguisse uma viagem por mar aberto. Neste imenso mar de areia raramente encontrou tranquilidade, no entanto, foi neste lugar que ela percorreu as paisagens mais marcantes de sua vida.

À medida que desbravava os caminhos inóspitos, defrontava-se com os sentimentos áridos da culpa, dos medos, das perdas, das incertezas, das dores e de raivas contidas.

Foi uma criança castrada por um pai violento e espelhada em uma mãe sofredora, em face disso, não aprendeu a expressar suas genuínas necessidades. 

Entrou na adolescência carregando sonhos infantis não realizados e experimentou a aridez do medo. Esse sentimento a acompanhou em quase toda a sua trajetória de vida, não só comprometendo suas escolhas, como também, sua saúde e seus relacionamentos.

A vida adulta chegou dentro desse cenário de medos e incertezas. Crescer para ela não foi um ato fácil e tampouco elaborado, pois muito jovem teve que assumir responsabilidades tal qual um adulto que tem uma vida recorrida. 


2. Perdendo o norte

Quando perdeu os pais, seguiu por esse caminho, emocionalmente anestesiada. Foi como ter perdido os rastros nas areias, apagados pelos ventos. Sentiu-se como quem tivesse perdido as referencias de uma vida... O Norte do deserto.

Durante anos sonhou com a mãe falecida caminhando pelo deserto ao seu lado, sinalizando os caminhos de sua vida. Por vezes, percebeu que esses sonhos lhe traziam mais que um leve bem-estar. Na verdade, esses sonhos foram lhe mostrando, ano após ano, que o que internalizamos não se perde jamais.

Perder o norte é não enxergar caminhos orientados. É deixar-se ser levada pelos instintos de proteção, tal qual um animal ferido. 

Descobriu que quanto mais se afastava da imagem doce e suave de sua mãe, mais se parecia com ela e que a imagem do pai lhe torturava a mente e oprimia suas reais emoções.

Embora órfã, continuou seu percurso sem rumo buscando o norte do deserto... Um sentido para sua vida. Muitas vezes caiu, noutras levantou com algumas dificuldades. Chorou suas lagrimas de saudades, esse sentimento que só os que perdem entes tão queridos conseguem entender. 

3. As tempestades de areia

Numa fria noite do deserto ela viveu a experiência mais dolorosa para os nômades: As tempestades de areia... A dor da separação.

As tempestades de areia são ventos fortes que fazem com que o deserto se torne perigosamente hostil. Busca-se abrigo até que elas passem, todavia, quando se está dentro dela, é como se estivéssemos perdidos para sempre.

Nestes momentos, creio, ela viveu uma das maiores dores da idade adulta ao encontrar-se no centro de ventos tão destruidores.

A pior situação em um relacionamento, certamente, é quando acreditamos que temos a posse e a propriedade de nossos parceiros. O que não é possível e nem saudável. Na verdade, devemos fazer parte do mundo de quem amamos, mas não temos o mundo de quem amamos. 

Ela compreendeu essa lição e, em um gesto, talvez desesperado, rompeu o elo que lhe prendia àquela relação de tantos anos. Uma relação de opressão.

Sofreu os revezes dessa decisão, mas compreendeu que seria melhor seguir sozinha a ter que ver seu cotidiano destruído. Ver seus sonhos tão emaranhados na vida do parceiro, sempre a espera que ele sinalizasse o momento em que ela poderia realiza-los. E o preço que pagou por sua liberdade foi muito alto, muitas vezes lhe custando a saúde. 

Sabe-se que em determinados momentos em que ela fraquejou, sentiu-se perdida em seu próprio caminho, fruto de sua decisão em romper uma união tão duradoura. Porém, ela nunca se arrependeu da decisão tomada. 

Carregou o estigma dos nômades e fez do seu caminhar uma coleção de paradoxos. Muitas vezes foi preciso que ela convivesse com uma grande solidão para entender a necessidade do outro. 

4. Os fossos desérticos

Nem toda a paisagem do deserto nos leva os olhos ao horizonte que oprime a vida dos nômades, fazendo-nos acreditar que só existem paisagens planas e o céu. 

Ela experimentou também a inclemência dos fossos desérticos... As depressões. Esses fossos estão localizados, não raras vezes, entre as dunas e quando o nômade é levado a eles, é como se viver em um eterno cair.

Nas depressões desérticas vive-se uma inclemência climática, extremos de frio e calor. As oscilações climáticas, trazidas pelas depressões, não perdoam ninguém e não existem fortalezas para se proteger dessa instabilidade.

Ela viveu por alguns anos nas depressões desérticas e esse foi o cenário opressor do seu universo. Era como se cada dia ela vivesse uma espécie de inferno. 

Quem vive nas depressões desérticas vive a dor predadora das inquietações, da falta de paz, da apatia. A depressão é o desertor de nós mesmos.

Ela seguiu dentro deste espaço incomensurável, acreditando que seria melhor sentir a dor do desconhecido a ter que continuar sentindo o horror do seu cotidiano: Seu mar de areia. E num ímpeto de desespero, tentou por fim a sua triste jornada pelos caminhos áridos.

O desespero é um sentimento árido. Senti-lo é sentir também desesperança, não ter perspectivas ou alternativas. E ela permaneceu neste lugar de maneira inerte. As horas se passavam sem importância e ela nem mesmo sabia se era dia ou noite.

Muitos nômades passavam por aquele lugar onde ela se encontrava reclusa, para alguns ela pedia ajuda, alguém que lhe estendesse a mão, que lhe socorresse daquele buraco. Não era ouvida, não era compreendida. 

E ela pensava nos oásis que tinha cruzado pelos caminhos do deserto. Onde estariam eles? Onde estavam os amigos de uma vida? Não havia ninguém.  Com a força interior que ainda lhe restava, conseguiu, em um dia qualquer do deserto, libertar-se dos fossos. Ela chorou suas dores mais profundas e rogou aos céus ajuda. Compreendeu que o melhor do cair e poder levantar-se. E dessa maneira o fez. Caminhou, ainda que sem rumo, em busca de ajuda.

5. O oásis

Acredita-se que os oásis são paraísos no meio do deserto. E o são, porque sempre aparecem próximo aos fossos desérticos. É um lugar para se abastecer e descansar.

Ela encontrou seu oásis personificado na figura de uma mulher que lhe estendeu os braços. Deu-lhe os subsídios para que ela se reerguesse. Essa mulher lhe deu abrigo para as noites frias e dias calorosos. Deu-lhe afetos, tal qual uma mãe. 

Descansou por longos dias nesse oásis e compreendeu a força que existe em uma linda amizade. Dia a dia, ela se recuperava dos sentimentos áridos do seu caminhar. 

Narrou sua história e os perigos pelos quais passou nesse seu caminhar sem norte. Seu oásis era uma alma iluminada, abençoada por afetos piedosos. Ouviu instruções, aceitou os bons conselhos e reaprendeu a caminhar. 

Voltou a ter fé na vida e a continuar sua caminhada em busca do norte, da saída ou de algo que lhe devolvesse o sentido da vida. Aprendeu com as experiências do seu oásis e foi se fortalecendo para sua nova partida.

Já refeita das dores e dos sentimentos áridos sentidos durante sua travessia no deserto, ela agradeceu a mão amiga do seu oásis e partiu.


6. A Miragem

Mais uma vez, seguiu sozinha e, após muitos anos de extensa caminhada, ela conheceu uma miragem e por ela se encantou. As miragens são fenômenos físicos e não ilusão de ótica. É o resultado da propagação da luz na atmosfera e que muitas vezes, transforma a paisagem no solo em espelhos.

Sem dúvida, quando se está diante de uma miragem não há temor, são paisagens agradáveis de ver. Ela encontrou o que tanto buscava nas areias do deserto.

Contemplou sua miragem por alguns instantes e sentiu-se feliz, algo como o prenúncio do bem em sua vida. Essa miragem veio até ela corporificada na figura de um homem doce, carinhoso e romântico.

Ela, a nômade, estava carente de uma vida inteira e queria alguém que lhe compartilhasse carinhos, que tocasse seus cabelos, que olhasse bem fundo nos seus olhos e deles retirassem o sal de suas lagrimas...A dor de nunca ter sido amada.

Descobriu que no deserto também se aprende sobre o valor do amor. Ela se entregou à miragem com tanta confiança, amor, respeito. Eles se amaram, entregaram-se um ou outro sem reservas. Era como se já estivessem sido predestinados um ao outro.

Viveram dias de glória, apaixonaram-se. Retiraram das areias quentes do deserto o bálsamo para as feridas da solidão que ambos sentiam. Eles foram felizes.

Projetou em sua miragem, os seus desejos e suas necessidades de afetos mais profundos e fora correspondida, recebendo das areias o significado das paixões.

Descobriu, através desse amor, que vale à pena transcorrer um caminho tão longo para se encontrar a felicidade. Construíram o amor com linhas de esperança. A cada dia o deserto se tornava mais ameno e a certeza de que logo encontraria o norte, fazia-se mais presente.

Alimentou esse amor, ainda que essa paixão, por vezes, transformasse seu coração em um palco de verdadeiros duelos nas areias. A razão lutava contra a emoção, a ética e a moral se fazendo imperar frente aos desejos, o “ser” e o amargor do “não dever ser”.

Suas frustrações foram aos pouco se acalmando à medida em que descobria, através desse amor, que a vida vale à pena ser vivida e que a esperança em dias melhores é um sentimento possível até mesmo para aqueles que atravessam seus mares de areia. 

Eles viveram o melhor de suas vidas. Descobriram similitudes em suas jornadas de vida. Sua miragem, cada dia, resgatava-lhe o melhor dos sentimentos contidos, fechando algumas lacunas que existiam em seu caminhar. 

Experimentou sentimentos inimagináveis. Entregou-se aos encantos, às delícias de um amor que aos poucos tomava forma. Seus sentimentos áridos foram sendo transformados e ela, dia a dia, começava a enxergar a possibilidade de encontrar o norte.

E quando a nômade aceitou os fatos que a natureza lhe impunha, nas palavras, conselhos, orientações de sua miragem, não fora apenas sábia, como também, capaz de encontrar o verdadeiro caminho para a sua libertação. E também compreender seus sentimentos de uma forma mais madura.

Ela refletiu sobre o que é o amor maduro, foi capaz de reconhecer que o verdadeiro amor dos seres apaixonados, não pode ser incondicional, porque a essência do outro já traz em sua origem condições. 

Entendeu que um amor de verdade tem que ter respeito pela realidade do outro que se ama. Entendeu que um grande amor não é a união de duas metades, mas sim de dois inteiros. Entendeu, por fim, que todos trazem defeitos e qualidades em suas maquetes corporais e que aceitar essas diferenças naturais é um ato de amar verdadeiramente e condicionalmente, é o caminho para se viver o amor maduro.

7. Encontrando o norte

Reconheceu que ao longo de sua vida conteve raivas e que isso fizera muito mal a ela, não só fisicamente, como também emocionalmente. A aridez da raiva se voltou para dentro de si mesma, atacando-a, destruindo-a. Cresceu contendo esse sentimento em um corpo que não oferecia perigo a ninguém e apesar de sempre parecer alegre, estava mortalmente ferida.

Todavia, quando aprendeu a dizer NÃO e a descobrir a força e a necessidade desta palavra, suas dores físicas e morais foram sendo suavizadas.

Encontrar o norte do deserto foi se ver capaz de traçar seu próprio destino, nos braços, quem sabe, de sua doce miragem. E a partir disso, suas feridas antigas foram, à medida que suavizava a aridez dos seus sentimentos, sendo fechadas e acalmadas.

Aprendeu a tratar as pequenas feridas físicas e psicológicas com o silêncio. E sua recompensa está sendo a liberdade pessoal e autodisciplina em proporções iguais.

O deserto tornou-se para ela algo mais que um caminho árido e solitário. Transformou-se em um excelente espelho para ver a natureza humana, ensinando-a a ficar mais dura e forte diante da vida.

Começou a desfazer seu deserto quando tomou consciência e coragem em admitir que foi criada para ser agradável, quando deveria ser sincera; que foi flexível, quando deveria ser autêntica e que foi adaptável, quando deveria fazer valer suas opiniões.

Deixar de se ver como vítima dessa imensa aridez e perceber que suportaria as emoções relacionadas às suas feridas mais profundas, fez dela uma pessoa mais madura e humana.

Aprendeu que a solução dos seus conflitos não estava na distância que mantinha de sua realidade dolorosa, mas na forma e na coragem com que a olhou de frente.

Descobriu nas areias que a sensação de morte iminente que a vida sempre lhe impôs, na verdade não significou a iminência de uma morte física, mas psicológica.

Olhou de frente para seus medos e perguntou a si mesma quais as imagens de sua vida queria que morressem? Quais as partes dela mesma precisavam morrer? Quais os modelos de vida gostaria que morressem durante seus súbitos ataques de medo?

E obteve respostas. Entendeu que, durante seus ataques de medo, ela manifestava sua vingança como ser reprimido e que estes episódios a atacavam sempre que ela se encontrava perigosamente distanciada dos seus verdadeiros sentimentos.

A trajetória da nômade durou muitos anos no deserto e o que ela aprendeu de amor e de vida, extraiu das areias. Esses caminhos, aparentemente, sem rumos ao cruzar o deserto com o objetivo de encontrar sua verdadeira identidade, trouxeram-lhe maturidade e experiências reconfortantes que lhe fizeram entender que o real sentido da vida não está na busca da felicidade, mas na doce descoberta do seu significado.

E como aprendizado de vida ela pode compreender que o paraíso nem sempre está em algum lugar do futuro ou mesmo em paisagens calmas.

Sua jornada pelo deserto lhe fez compreender que o paraíso pode estar também em nosso presente, onde quer que nos encontremos, desde que estejamos em paz e resgatando a possibilidade de amar verdadeiramente.

Hoje, ela inicia sua caminhada para a saída do deserto. E, através da simbologia de sua miragem, ela, pela primeira vez, vislumbra o mar. O que a espera? Talvez o sentimento de calmaria ou, quem sabe, a sensação mágica da realização de tantos sonhos contidos pelo deserto. 

Sua miragem lhe espera próximo ao mar....Os ventos que vêm do mar, prenunciam uma vida mais feliz, embora ela saiba que sua trajetória pelo deserto tenha sido a grande experiência de sua vida, ao tomar consciência que, através do amor, os sentimentos áridos podem ser trabalhados, transforados e mesmo enriquecedores...Que sinalizam que a força de um homem está em sua tenacidade.

E para aqueles que acreditam que os mares de areia são hostis, nossa nômade nos mostrou, através de sua história de vida, que nem sempre, quem cruza os desertos traz areia no coração.

Ana Sá Peixoto