terça-feira, 26 de junho de 2012


Entre o rio e o lago: A dimensão dos desejos




Quero lhe contar uma história de desejos...

Certa vez... Em um pequeno bosque, um vigoroso rio perdeu sua direção, mudando seu curso natural para se acercar de um lago que, apesar da aparência calma, guardava inquietações e mistérios em suas profundezas.

Existia uma estreita e sagrada faixa de terra que separava estes dois mundos: O do rio e o do lago.

Para um espectador desavisado, este cenário poderia ser bucólico demais para atrair a atenção de quem andasse por aquele caminho.

Todavia, se usarmos nossa imensa sensibilidade, compreenderemos a importância que esta pequena faixa de terra representou para esses dois universos.

Esse caminho estreito e tênue, não apenas separava as diferenças naturais destes dois atores, como também, paradoxalmente, os aproximava em suas semelhanças: O desejo!

O desejo fascinou o rio que queria, a qualquer custo, sorver o pequeno lago. Talvez esta vontade do imperioso rio fora motivada por uma necessidade de se mostrar como sendo “O Senhor de todas as águas”.

Depois de relutar, por estranheza, pudor ou inexperiência nos caminhos da natureza, o lago se entregou aos encantos e necessidades do rio. E como dois amantes, ficaram às margens de suas próprias histórias. 

O drama do desejo que viveram abalou a estrutura do saber de ambos os atores desta bucólica aventura. Já não sabiam o que era certo ou errado, o que era permito ou negado ou ainda, proibido.

O desejo e a atração que sentiram um pelo outro, fora forte demais para os caminhos da razão... 

Rio e lago foram amantes sem quartos, sem camas, sem doces palavras, sem ternas paixões e também sem promessas de um encontro... 

O desejo, apenas ele, fora o ponto de interseção entre dois mundos tão diferentes. E neste caminho, entre a loucura e a sanidade, rio e lago devotaram suas necessidades mais sublimes e foram ao fundo de suas vontades encobertas.

Neste espaço sagrado, experimentaram e uniram o melhor que tinham: O corpo e, quem sabe, a alma. Ofereceram-se à semelhança dos rituais religiosos entre pagãos e se entregaram como que profanando a moral.

Porém, não foram capazes de viver a delícia do corpo quando em sacrifício da mente e por isso, não atingiram o ponto culminante de seus desejos: O gozo e a resolução de suas necessidades mais profundas. 

Permanecendo juntos neste espaço incomensurável, rio e lago, viram-se envolvidos em uma intimidade profunda e severamente proibida. Teriam que voltar ao curso normal.

O rio, por sua madureza e experiência nos caminhos da natureza, abdicou de pronto desta “união” em nome de sua realidade, após, é claro, ter experimentado toda a loucura e doçura do desejo que o lago lhe proporcionara.

O lago, em decorrência de sua natureza limitada, nunca havia experimentado as loucas sensações da imensidão de um rio, entrou em conflito com a repentina separação.

Na verdade, o lago não havia percebido os sinais de negação que o rio lhe transmitia: “As mudanças que ocorrem no curso dos rios, todas são temporárias e ocasionais”. “Nenhum rio deságua em um lago”. “Todo rio tem o seu par: O mar”.

Como foi triste o cotidiano deste lago ao perceber as reais intenções do rio: “Sem Paixão!. Sua paisagem estagnou, ficou turvo e sem brilho. Sofreu os revezes desta “relação” e sentiu-se mortalmente ferido.

Por sua natureza excessivamente doce e romântica, o lago não conhecia as uniões instantâneas e acreditava que a paixão era a “pedra de toque” de todas as relações da natureza. 

A vida no lago voltou a ser colérica e ele voltou a padecer das paralisias, das anestesias, dos tremores, das contorções e dos medos que a vida sempre lhe impôs, mas apesar de tudo, sentiu saudades que se misturaram ao desespero. 

Esta saudade ficou refletida em doces linhas de um belo diário. Essas linhas, não só continham os gritos de revolta, as lágrimas de um coração partido, como também, a doçura dos sonhos que o lago tinha em desaguar no rio. Sonhos impossíveis de serem realizados, pela própria natureza de ambos...

Várias vezes a sanidade do lago fugiu por entre suas margens e quando em fim este a recobrou, pode conhecer, ou quem sabe, desconhecer, o universo pelo qual se apaixonara: O rio.

E em excessos de paixão, motivado por uma profunda fragilidade ou por fantasia, o lago adoeceu de uma dor tão cruel que o fez adormecer durante horas, dias, semanas... Meses. 

Chorou sozinho, no escuro. Teve febre no seu silêncio e tremores em sua solidão. Carregou a dor de ter sido abandonado pelo rio no momento em que mais precisou dos seus efetivos cuidados. 

Quanto ao rio, este saiu desta “relação” de forma elegante, sem que nenhuma pedra interrompesse o seu percurso. Sua vida seguiu o curso normal, como se nada tivesse acontecido. 

Mas, acredito que ele também levou consigo o amargor do arrependimento... 

No seu universo, o rio velou por sua imagem ilibada e por uma racionalidade enriquecida pelos princípios éticos que regem a relação “rio-lago”. Talvez, ele tenha se acovardado ou apenas saciado a sua lascívia, ou quem sabe, refletido sobre as conseqüências penosas para todos aqueles que cometem atos impensados.

Ancorou-se em boas justificativas como: “Querer não é poder”, “temos mundos diferentes”, “somos proibidos um para o outro”. Frases vagas, medidas, calculadas, mas que abriram enormes feridas no lago.

Enquanto o rio se fundamentava na razão para por um fim àquela “relação”, o lago vivia a desordem do seu cotidiano e o claustro do sentimento negado.

Se o rio fora realmente feliz, não se sabe e talvez nem se deva saber. No entanto, à semelhança dos homens, o rio costuma confundir covardia e coragem e dificilmente se culpa por ter rasgado a alma de uma mulher.

O lago teve sua alma rasgada em seu momento de maior lucidez e fragilidade...

O certo é que rio e lago foram traídos por seus inconscientes e sofreram as conseqüências desta dolorosa e solitária traição. 

Conta – nos esta história, que o lago teve violado o seu “Diário de águas turvas” pelo “Senhor dos Lagos”, que, ao descobrir o segredo que lago e rio guardavam, ameaçou, eivado de ciúmes e posse, por fim à existência do lago e ao curso do rio.

O lago, num ímpeto de desespero frente a grande ameaça, jurou respeito eterno ao seu Senhor, como forma de proteger sua integridade e também a do rio, seu encantamento.

No entanto, o lago sofrera as punições mais severas impostas a todos aqueles que violam as leis da natureza. Foi encarcerado em uma redoma, como forma de evitar que outros rios dele se aproximassem. Teve sua intimidade violada e sua dignidade destruída, por muitos que se aproveitaram de sua bondade e honestidade.

Hoje, sabe-se que aquele pequeno lago, incauto, frágil e inseguro, rompeu as dificuldades impostas pela natureza e também pelo seu Senhor, curou suas dores mais profundas, recobrando a sanidade e num momento de grande agitação e coragem, transbordou. 

Tornou-se riacho e nutre os sonhos dos livres: “Tornar-se rio e desaguar num mar”. 

O que teria levado o rio e o lago a seguirem caminhos tão distantes, após terem vivido a louca experiência da proximidade e da dimensão dos seus desejos?

A resposta eu não sei, mas talvez a natureza ou a fragilidade de ambos um dia possa explicar... 


Ana Sá Peixoto


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