segunda-feira, 9 de julho de 2012


                                     A FLOR AMARELA 





Ela tinha sete anos de idade quando acalentou um sonho de dar uma flor ao seu pai.  Seu pai trabalhava muito e via pouco os filhos. Era um homem distante, as vezes frio, as vezes melancólico. Havia violência em seu lar e esta criança cresceu neste cenário de medos.  

Era uma criança doce e essa docilidade herdou de sua sofrida mãe. Sonhadora como qualquer criança de sua idade, imaginava o dia em que criaria coragem de presentear o pai, homem sempre distante das demandas familiares. 

Um fato marcou sua história infantil e, quem sabe, também toda a vida adulta. Ela estudava em uma escola primária e todas as manhãs, ao final das aulas, ela observava uma imagem que considerava um ato de representação máxima do amor. 

Havia uma coleguinha sua de escola, cujo pai sempre a buscava no término das aulas. Essa sua amiguinha  recebia o pai com uma delicadeza de afetos. Sempre que o pai ia buscar sua amiguinha, ela, a amiguinha, arrancava uma flor do jardim da escola e oferecia ao pai, acompanhado sempre de um afetuoso abraço e beijos. Isso se repetia cotidianamente. 

Nossa doce criança, protagonista desta história, assistia à cena comovida por lágrimas. Quanto ela queria fazer a mesma coisa! Mas não podia por que seu pai era sempre ausente nas horas em que ela se encontrava acordada. 

Um dia, essa amável criança, criou coragem em realizar seu doce sonho, presentear o pai que tanto amava e quem sabe, receber dele aquele tão esperado abraço e beijos afetuosos. 

Numa tarde de um dia qualquer da semana, ela chegou da escola e foi ao jardim de sua casa e percebeu que ali havia várias flores amarelas. Escolheu uma, a mais linda e perfumada. Esperou a noite chegar, pois seu pai sempre chegava do trabalho por volta das 19:00h. 

Com ansiedade, esperava que as horas se passassem logo e quando a noite chegou, ela recebeu o pai na porta, porém não pode falar nada porque ele dirigiu-se imediatamente à cozinha para jantar. Sua mãe estava sentada à mesa junto a ele, no momento do jantar. Parecia que estavam discutindo. Mas o coraçãozinho dela não entendia a hora de uma espera. 

Enquanto seus pais jantavam, ela correu para o jardim e retirou aquela flor amarela que havia contemplado o dia todo. Arrancou-a do jardim, limpou-a para que não houvesse formigas e correu até a cozinha onde seus pais continuavam discutindo, brigando, mesmo enquanto jantavam. 

Ela tomou fôlego e num impulso, próprio de uma criança que está para realizar seu grande sonho infantil, ela correu até o pai, com a flor amarela na mão, abraçou-o fortemente, porém, em seguida, foi agredida por ele com um tapa em seu rostinho miúdo. Ela não se lembrou de nada imediatamente após o episódio, porque foi jogada ao chão. Quando voltou a si, estava no colo de sua mãe que a levava para seu quarto. 

Sua mãe, docemente, a colocou na cama e aos poucos foi voltando a si e tomando consciência do que havia acontecido. Chorou... Enquanto sua mãe tentava acalmá-la ela percebeu que a flor amarela ainda encontrava-se presa a sua mãozinha. Mesmo com todo o ocorrido, o cuidado com a flor, que seria o presente que daria ao seu pai, não conseguiu desprender-se dela, talvez, pelo zelo ou o cuidado que todos têm com algo que se estima muito. 

Algumas horas se passaram e ela, a criança, já estava mais calma, foi nesse momento que ouviu o diálogo dos pais sobre o ocorrido. Sua mãe perguntava a ele: "Por que você fez isso com ela? Ela é apenas uma criança". E ouviu a resposta do pai: “Fiz para que ela nunca mais se meta em conversas de adulto”. 

Após ter escutado isso, chorou novamente. Pergunto-me neste momento, como pode uma criança de sete anos de idade compreender o que é uma conversa de adulto? 

Logo em seguida, sua mãe voltou ao quarto da criança porque a escutou chorando. Levou em suas mãos umas compressas de gelo e depositou no rostinho de sua filha amada e disse: “Filha, segure essa compressa até o gelo derreter, porque seu rostinho ficou machucado". A criança acenou que sim e lá permaneceu até adormecer. 

Na manhã seguinte, ela levantou-se para ir a escola e olhou-se no espelho, viu uma imagem que a assustou e deixou seu coraçãozinho apertado. Em volta de seu olho, na face esquerda, havia um hematoma, estava com a pele arroxeada. Chorou mais uma vez... Sofria. 

Sua mãe entrou no quarto e disse a ela: “Filha, você não irá a escola essa semana até que esse seu dodói cicatrize". Entendo a preocupação de uma mãe frente a uma grande violência. Como permitir que sua filha fosse a escola com marcas de agressões, de violência doméstica? Certamente que a professora iria perguntar a origem daquele machucado e sabemos como é a inocência de uma criança, certamente ela diria, sem querer claro, prejudicar o pai: “Foi meu pai quem me bateu”. 

Essa pergunta e respostas seriam inevitáveis e por isso a decisão da mãe em não deixa-la ir para escola enquanto ela não cicatrizasse. Pergunto-me, mais uma vez, qual o dever de um pai ou de uma mãe em proteger seus filhos da violência doméstica? Penso estar diante de um dever legal de dar proteção integral a criança que sofre este tipo de abuso. Mas, como fazê-lo quando estamos diante de uma linha tênue que separa a prática protetiva da prática abusiva? Sua mãe silenciou... 

Uma semana se passou após o triste fato ocorrido e ela, nossa protagonista desta lamentável história, voltou para a escola e como de costume, presenciou novamente aquela cena de sua amiguinha entregando uma flor ao pai. Nesse instante, ela não sorriu, apenas chorou diante do que via e se perguntou: “O que eu fiz de errado?”. Lamentou essa dor por muito tempo. 

Vinte anos se passaram após o evento traumático e no dia de seu casamento, seus pais não puderam comparecer a igreja, porque se encontravam enfermos em uma cama. Ela desmarcou por três vezes seu casamento na espera da melhora dos pais, o que não acontecia. Até que um dia sua mãe disse a ela: “Não desmarque mais, vá ao seu casamento e dê esse gosto ao seu pai de ver sua filha casar, antes que ele venha a falecer”. 

Obediente, ela seguiu para a igreja para consumar seu casamento, após cinco anos de noivado. Seus pais não compareceram e não houve festa, apenas uma cerimônia rápida na igreja para oficializar seu matrimônio. Seu buquê de noiva era feito de flores cor de rosas e ela não entregou a ninguém, rompendo com a tradição, porque em seu coração aquelas flores tinham um destino certo. 

Após a cerimônia religiosa, muito rápida, ela voltou a casa dos seus pais e com o buquê na mão, entrou no quarto deles. Seu pai estava em uma fase alheia à realidade e já não conhecia mais ninguém. Ele estava deitado em sua cama e sua mãe ao lado. Ela se aproximou dele e falou ao seu ouvido: “ Querido pai, essas flores são para o senhor e mesmo que não sejam as amarelas, receba-as de coração como sinal do meu amor e afeto pelo senhor”. Ela deu um abraço afetuoso no pai que ora se encontrava gravemente enfermo. 

Seu pai abriu os olhos e duas lágrimas escorreram pelo rosto dele. Creio que algumas imagens vieram a luz na mente do pai que justificassem aquelas lágrimas derramadas. Ela lhe beijou o rosto. No dia seguinte, seu pai perdeu totalmente a memória e veio a falecer um mês após seu matrimônio. Sua mãe, também enferma, veio a falecer quatro meses exatos após a morte do pai, no mesmo dia. 

Enfim, creio que o coração daquela mulher, que outrora fora uma criança, sentiu-se grata a Deus por lhe ter dado a oportunidade que sempre esperou:: "Entregar as flores ao pai amado". 

Reflito agora sobre que tipo de  mulher nasce de uma criança que sofreu violência doméstica? A resposta poderiam ser muitas, mas ela conduziu sua vida com integridade, reconheceu o valor do perdão.

Penso que esta história possa nos remeter `a reflexões diárias sobre um mundo sem violência. E que o respeito à dignidade humana, sobretudo de uma criança indefesa, deva ser um imperativo nos lares. 


Ana Sá Peixoto.

4 comentários:

  1. Seus textos, Ana, são atemporais.
    De modo que merecem estar num livro...
    Pense nisso.
    Gostei desse também.
    Bjs.

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  2. Obrigada querido Adehmyr.Sempre uma honra receber sua visita no Blog, com comentários incentivadores. Penso que escrever um livro seja um projeto interessante.
    Um grande beijo
    Ana

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  3. lindo texto e comovente história, apertou meu coração por ser pai e ter uma filha de 5 anos, graças que sua personagem não cresceu com o ódio e a inveja em seu coração, mas sim com amor e a dádiva de perdoar, abraços poetisa!

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  4. Abrigada Sid, realmente é uma história comovente e que nos faz refletir, diuturnamente, sobre a proteçao de nossas crianças, sobretudo nos lares. Grande abraço e obrigada pela visita.

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